Em Considerações
sobre o governo representativo (1861), John Stuart Mill ressalta a
preponderância da participação dos cidadãos nas funções públicas, pois no
exercício destes cargos, eles agem, ou são induzidos a agir, de acordo com o
interesse público, considerando o bem-estar geral, além de aperfeiçoarem sua capacidade
intelectual. As funções locais não são procuradas por classes altas, permitindo
a presença das classes mais baixas, que consequentemente adquirem por meio da
participação nos corpos locais, educação política. Esta
participação torna-se relevante, sobretudo por estar relacionada à pluralidade,
impedindo o surgimento de uma ditadura da maioria.
Conforme argumenta
Stuart Mill, o trabalho exercido pelos cidadãos apresenta-se como rotina,
constitui apenas um meio de satisfazer suas necessidades diárias e não aprimora
suas faculdades mentais no sentido de elevar suas percepções acerca do mundo
exterior. Há carência de faculdades enérgicas e ativas nos cidadãos. Dar-lhes algo
a fazer pelo público supre essas deficiências. O autor expõe como exemplo
Atenas, onde a prática dos negócios judiciais e eclesiásticos elevou o nível
intelectual dos cidadãos, criando seres bem diferentes do que aqueles cuja
atividade encerrava-se em trabalhar rotineiramente.
Assim sendo, o
autogoverno coletivo, conceito entendido como um sistema político a partir do
qual a administração pública encontra-se sob o controle da sociedade, é, de
acordo com as premissas de Stuart Mill, a forma ideal de governo, pois seria
capaz de satisfazer as exigências sociais e dentro dele toda e qualquer
participação seria relevante. Porém, devido ao fato dessa participação pessoal
de todos ser impossível em grandes territórios, o tipo ideal de governo
apresentado pelo filósofo é o governo representativo. Tal governo deve promover
além de aperfeiçoamentos, todos os graus de desenvolvimento social bem como
ações que assegurem bom desenvolvimento futuro da sociedade. Estas
características devem estar presentes em qualquer uma das variedades do sistema
representativo. Dentro deste sistema, o poder supremo de controle em última
instância deve pertencer à massa reunida da comunidade, onde todo cidadão tem seu
direito no exercício do poder supremo assegurado e também é chamado
ocasionalmente a tomar parte ativa no governo por meio do exercício de alguma
função pública. Na medida em que alguns forem excluídos dessa participação,
seus interesses estarão nas mãos dos outros, e eles mesmos estarão em condições
desfavoráveis para aplicar suas faculdades no aprimoramento de sua própria
situação e da situação de sua comunidade, gerando um empecilho para o bom
estabelecimento da prosperidade geral.
John Stuart Mill
destaca dois males positivos do governo representativo, que, assim como as
demais formas de governo, não está isento de riscos: incapacidade geral da
assembleia controladora e o perigo de estar a assembleia controladora sob
influência de interesses que não condizem com o bem-estar geral. Sabendo-se que
há em todos os países uma classe reconhecida como pobre e outra classe como
rica, pode-se identificar que entre essas duas classes há a predominância de
interesses opostos entre si. De acordo com o autor, a teoria de governo que
acredita que a maioria numérica é capaz de fazer o que nenhum outro depositário
do poder é capaz está equivocada, pois qualquer classe social detentora do
poder pode se mostrar avessa ao bem-estar geral em prol de seus interesses
próprios e pautados sobre sua condição atual. De acordo com John Stuart Mill (1861,
p. 67)
Pode-se
contar com uma certa dose de consciência e de espírito público desinteressado
por parte dos cidadãos de uma comunidade pronta para o governo representativo.
Mas seria ridículo esperar uma dose suficiente dessas duas qualidades,
juntamente com um discernimento intelectual suficiente para colocá-los a salvo
de qualquer sofisma plausível que tendesse a disfarçar em interesse geral, e
preceito de justiça e de bem público, o interesse próprio de sua classe. Todos
nós sabemos o tipo de falácias preciosas que podem ser inventadas em defesa de
atos de injustiça propostos, apesar de tudo, para o bem imaginário da massa.
Um dos maiores riscos à democracia e a todas as
outras formas de governo consiste, portanto, na predominância dos interesses
dos detentores do poder. Esse risco, em Considerações
sobre o governo representativo é identificado por Mill (1861, p. 68) como
sendo “[...] o perigo da legislação de classe; do governo que visa (com sucesso
ou não) o benefício imediato da classe dominante, em perpétuo detrimento da
massa [...]”. De acordo com o autor, toda e qualquer classe é constituída por
pessoas cujo interesse é nocivo ao bem-estar geral. Numa sociedade moderna,
basicamente divida em duas classes (trabalhadores e patrões), ambas só teriam
suas afinidades balanceadas caso cada cidadão tivesse o mesmo número de votos
no Parlamento. O sistema representativo, na perspectiva de Stuart Mill, não
deveria permitir que os interesses seccionais prevalecessem acima da verdade,
da justiça e dos outros interesses seccionais como um todo, pois assim haveria
equilíbrio entre os interesses pessoais. Quando o poder reside exclusivamente
em uma classe, esta classe deve sacrificar em favor de si mesma as outras classes,
pois na ausência de seus representantes, os interesses das outras classes
poderão ser negligenciados ou tratados de forma contrária ao das pessoas a quem
concernem diretamente.
Segundo o supracitado
filósofo, todos os interesses ou classes devem ser representados no Parlamento,
garantindo os interesses parciais defensores, sem que haja, no entanto, o poder
de comandar o tribunal, reunindo as proposições de representação de classe e representação
numérica, pautado no sistema exposto por Thomas Hare. Nota-se que uma ordem
política justa deve promover o bem-estar para o maior número de pessoas
possíveis, ainda que um grupo minoritário possa ficar em situação desfavorável,
o importante é que o bem-estar da maioria seja assegurado. Nas palavras de John
Stuart Mill (1861, p. 78)
Muito embora as
inteligências e caracteres superiores estejam sempre em menor número, faz muita
diferença o fato de serem ouvidas ou não. Na falsa democracia que, ao invés de
prever a representação de todos, concede-a apenas às maiorias locais, a minoria
instruída poderá não ter nenhuma voz no corpo representativo. É admitido o fato
de que na democracia americana, construída de acordo com este modelo falso, as
pessoas mais cultas das comunidades raramente se candidatam ao Congresso mas às
Assembléias Estaduais, de tão pequena a possibilidade que têm de serem eleitas,
à exceção daquelas que se mostram dispostas a sacrificar suas próprias opiniões
e maneiras de pensar e a se tornarem porta-vozes de seus inferiores no saber.
poupada na maior acusação que lhe pode ser feita e de um dos seus mais
formidáveis males. Contra este mal, o sistema de representação pessoal proposto
pelo Sr. Hare é quase que um medicamento específico.
O ideal
seria, conforme o sistema proposto por Thomas Hare e condizente com as
proposições de Stuart Mill, que a minoria de mente instruída pudesse se unir
para eleger um número de homens capazes, que os melhores membros tanto das
classes pobres, quanto das classes ricas pudessem se reunir com o intuito de desconsiderar
suas preferências de classes a fim de juntos traçarem o caminho do interesse
comum.
Os
representantes da maioria, mesmo estando em maior quantidade, já não estariam
mais em absoluta vantagem e estariam sujeitos à crítica dos demais, gerando um enfrentamento
de ideias naturalmente saudável para fortalecer a lógica do raciocínio. Logo, só
pode haver progresso social enquanto existe conflito entre os poderes, as
autoridade, as diversas classes e as demais mazelas sociais.
REFERÊNCIA
BIBLIOGRÁFICA
MILL, John
Stuart. Considerações sobre o governo
representativo, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.